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Quando não há o que falar em terapia

Há um ponto do processo terapêutico que costuma ser silencioso, mas decisivo: o momento em que percebemos que falar “do que aconteceu” já não basta — e que será preciso encarar o que sentimos, pensamos e desejamos, inclusive aquilo que nos causa vergonha.

Freud nos mostrou que não sofremos apenas pelo que vivemos, mas sobretudo pelo que recalcamos. Há afetos, pensamentos e impulsos que aprendemos, desde cedo, a considerar inaceitáveis. Raiva, inveja, desejo, ambivalência, agressividade, prazer onde “não deveria existir”. Para preservar uma imagem de quem acreditamos que deveríamos ser, empurramos tudo isso para fora da consciência. Mas o que é recalcado não desaparece — retorna.

Quando esse retorno começa a se anunciar na análise, algo curioso acontece: o discurso empobrece. Surge o “não tenho nada pra falar”. As sessões começam a ser adiadas, canceladas, evitadas. Não por falta de conteúdo, mas porque há conteúdo demais, e ele ameaça romper a fantasia de sermos apenas bons, corretos, maduros, coerentes.

Esse é o ponto em que a resistência se instala. Não porque a pessoa não queira melhorar, mas porque melhorar implica admitir que somos também atravessados por sentimentos “feios”, contraditórios, socialmente mal vistos. Admitir isso dói no narcisismo. Dói reconhecer que não somos a versão idealizada que tentamos sustentar — nem para o outro, nem para nós mesmos.

Então fugimos. Mas a fuga cobra seu preço. Os conflitos retornam em repetição: os mesmos relacionamentos, os mesmos impasses, as mesmas crises emocionais. A angústia reaparece como um chamado insistente: olhe para mim. E é nesse momento que a pessoa volta “correndo” para a terapia, não porque agora tudo esteja claro, mas porque o sofrimento se tornou novamente insuportável.

A análise só começa a cumprir seu propósito quando nos permitimos suportar não sermos ideais. Quando aceitamos que sentir ódio não nos torna monstruosos, que desejar não nos torna imorais, que pensar coisas inconfessáveis não nos define — mas nos revela. Não se trata de agir sobre tudo o que sentimos, mas de assumir a existência desses afetos, dando-lhes palavra.

A psicanálise não busca transformar ninguém em alguém “melhor”, mas em alguém menos alienado de si. E isso exige coragem: a coragem de olhar para o que foi recalcado, de sustentar a angústia de se ver por inteiro, e de permanecer na sessão mesmo quando tudo em nós quer fugir.

Porque é justamente ali, onde a vergonha aparece, que o trabalho analítico começa de verdade.

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